A ausência de uma ação coordenada e a dificuldade no processo decisório por parte do Estado e dos municípios no enfrentamento à covid-19 levaram que o Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) ajuizasse uma ação civil pública que culminou na decisão proferida nesta quinta-feira (6/8). Com a liminar, o Governo do Estado deverá alterar os instrumentos que compõem o modelo de regionalização e definir de forma expressa as medidas que devem ser tomadas pelos municípios em cada um dos níveis de risco que integram a Matriz de Avaliação do Risco Potencial Regional.

A decisão da 2ª Vara da Fazenda Pública da Comarca da Capital proferida na ação civil pública ajuizada pelo MPSC estabelece um prazo de cinco dias para todas as adaptações necessárias a fim de que a suspensão de serviços e a adoção de recomendações não dependa da deliberação dos municípios quando a região entrar em nível gravíssimo. Leia a seguir uma entrevista com o Coordenador do Centro de Apoio Operacional de Direitos Humanos e Terceiro Setor (CDH), Promotor de Justiça Douglas Roberto Martins, que realiza a interlocução entre o MPSC e o Centro de Operações de Emergência em Saúde (COES).

Em que termos a decisão da Justiça atende a ação civil pública ajuizada pelo MP?

A decisão que foi proferida na quinta-feira (6/8) atende integralmente o objetivo do Ministério Público com essa ação civil pública: restabelecer o papel do Estado na condução da política de saúde de enfrentamento à pandemia de covid-19 no interesse das regiões de saúde, considerando que é uma responsabilidade constitucional do Estado agir quando se tratar de interesse regional. É o que chamamos de "princípio da prevalência do interesse". O município age no interesse local, quando prevalece o interesse municipal, e o Estado age quando se trata de interesse regional ou estadual. Por quê? Justamente porque o impacto da pandemia ultrapassa o âmbito dos municípios. Ele atinge toda a região de saúde e o sistema hospitalar, que é organizado de forma regional, em rede. São as redes de urgência e emergência que dão atendimento a todos os municípios de uma determinada região, por isso é preciso que as medidas para uma região de saúde sejam coerentes, uniformes, sob pena de não funcionarem. Então o objetivo foi restabelecer essa condução regional pelo Estado, para que mantenha a coordenação do processo, e dar previsibilidade às ações, a fim de evitar que toda semana, após uma avaliação da matriz de risco, se discuta o que vai ser feito ou não, o que vai ser suspenso de atividades de circulação de pessoas ou não, mas que a própria matriz já preveja para cada nível de risco potencial da transmissão quais serão as medidas adotadas. Isso evita, também, que se adotem medidas bastante distintas em regiões de saúde que estão classificadas no mesmo nível de risco potencial, mantendo isonomia entre elas. Assim, as instituições e as pessoas já vão saber, quando a sua região entrar em um risco grave ou gravíssimo, se o comércio vai funcionar ou não, se o shopping vai funcionar ou não, se o transporte vai funcionar ou não etc. Isso dá maior previsibilidade e segurança para o processo.

De forma específica, qual é o motivo pelo qual a Justiça atendeu parcialmente o pedido do MPSC? O MP vai recorrer?

A nossa ação, como é um tema muito complexo e bastante técnico, trazia alguns pedidos secundários e subsidiários, como o de que o Estado de Santa Catarina, às próprias expensas, fizesse ampla divulgação do resultado da decisão dessa ação. Esse pedido, por exemplo, foi indeferido pelo juízo, até porque os veículos de imprensa já estão dando publicidade a ela, bem como alguns pedidos secundários ou alternativos, caso não fosse deferido o pedido principal. Como o juízo já deferiu os principais pedidos formulados, por consequência ele não deferiu esses pedidos secundários ou alternativos. Esse indeferimento parcial não comprometeu os principais objetivos que o Ministério Público tinha com a ação, que eram restabelecer a condução técnica do processo para que as medidas indicadas tecnicamente estivessem previstas diretamente na matriz e fossem efetivamente adotadas e que, quando a região chegasse ao nível gravíssimo, o Estado assumisse diretamente essas ações, além de coordenar e acompanhar as regiões nos demais níveis. Nesses termos os pedidos foram deferidos, e os que foram indeferidos foram pedidos secundários, subsidiários. Por conta disso, o MP não tem interesse nenhum em recorrer dessa decisão.

Com a decisão, o que o Estado deve fazer? Quais são os prazos?

A decisão determina que o Estado faça adaptações nas ferramentas que compõem o programa de descentralização e regionalização das medidas para que preveja nelas expressamente quais medidas concretas vão ser adotadas pelas regiões quando elas entrarem em cada um dos quatro níveis de risco que estão previstos na matriz de avaliação de risco epidemiológico do Estado. Então a ideia é que essas ferramentas passem a prever expressamente e não dependam de uma decisão posterior sobre o que vai ou não ser feito quando a região entrar em determinado nível de risco. Além disso, a decisão determina que o Estado adote diretamente as medidas recomendadas para as regiões que entrarem no risco gravíssimo, ou seja, que não dependa da deliberação dos municípios quando se tratar de uma situação de maior gravidade. Foi fixado o prazo de cinco dias para o cumprimento dessas determinações, em especial a adaptação das ferramentas.

Como funciona o modelo de regionalização e, com a decisão, até onde fica a responsabilidade dos municípios e quando o Estado deve intervir?

A regionalização funciona a partir de diversas ferramentas que foram construídas pelo Estado de Santa Catarina, por um trabalho bastante competente da Secretaria de Estado da Saúde, que merece todo o reconhecimento por ele. São ferramentas tecnicamente muito boas, muito consistentes, e elas fazem uma análise da realidade epidemiológica de cada uma das 16 regiões de saúde do Estado. Com base na taxa de ocupação de leitos, no número de óbitos, na quantidade de pessoas infectadas naquele momento, naquela região, tem-se um resultado do risco que a região de saúde vivencia naquele momento, em especial com a possibilidade de estar se aproximando de um eventual colapso de sistema hospitalar, do risco de a situação fugir do controle das autoridades. A partir dessa avaliação é que as medidas devem ser adotadas e adaptadas a essa realidade, permitindo maior ou menor retomada das atividades de circulação de pessoas - evidentemente, sempre seguindo protocolos e regras de cuidados sanitários. O processo de regionalização é importante e necessário para que haja essa adaptação das medidas à realidade de cada região. A preocupação do Ministério Público é que as decisões sejam de fato tomadas quando o risco se alterar, quando a situação se agravar. Assim, a partir dessa avaliação de risco, com a decisão judicial, quando a região estiver nos riscos moderado, alto e grave, a responsabilidade pela adoção das medidas continua sendo dos municípios, que devem fazê-lo preferencialmente de forma conjunta, articulada e a partir das recomendações técnicas. Quando a região, porém, entrar no nível gravíssimo - que é um indicativo de que as medidas adotadas até então não surtiram o efeito esperado e de que a transmissão tem se agravado naquele território -, aí passa a ser novamente responsabilidade do Estado adotar diretamente essas medidas, independentemente das decisões que venham a tomar os municípios. Assim, os municípios seguem tendo o controle das medidas e da situação nos níveis moderado, alto e grave. Se a região conseguir atuar de forma conjunta, articulada, com a cooperação das instituições, do setor produtivo e de toda a população nas medidas de redução da velocidade de transmissão, seguirá tendo o comando das ações. Quando não for possível conter o aumento de casos e o agravamento do risco da região, a condução do processo voltará ao Estado.

Quais motivos levaram o MP a ajuizar essa ação? E agora, com essa decisão da Justiça, o que se espera de mudança na política de regionalização?

O motivo foi a observação do processo até aqui. O Ministério Público tem acompanhado desde o início do processo de regionalização essa mudança do fluxo decisório aqui no Estado, que aconteceu lá no início de junho, final de maio. O Ministério Público tem acompanhado todo esse processo e desde então vem percebendo que as regiões, salvo algumas exceções, não estavam de fato adotando decisões coerentes e conjuntas, de forma articulada e seguindo as recomendações técnicas. A maioria delas não vinha conseguindo atuar de forma articulada, coordenada, sem uma participação direta do Estado nesse processo de tomada de decisão. Então, ao longo do primeiro mês, que foi o mês de junho (já com a regionalização em vigor), nós não tivemos conhecimento de medidas adotadas de forma regionalizada, mesmo após uma das regiões de saúde, que foi a Foz do Rio Itajaí, ter ingressado no nível gravíssimo de atenção por parte da matriz de avaliação de risco do Estado. Na sequência, várias outras regiões passaram aos níveis grave e gravíssimo de risco epidemiológico e as decisões continuaram sendo bastante divergentes. Nós conseguimos observar essas dificuldades bem presentes na região do Alto Vale do Itajaí, na região da Foz do Rio Itajaí, na região da Grande Florianópolis, na região da AMUREL - em que se teve uma decisão regionalizada e posteriormente alguns municípios mudaram de ideia, o que exigiu uma intervenção judicial por parte do Ministério Público, inclusive - e na região do Médio Vale do Itajaí, onde isso também aconteceu - Blumenau acabou adotando isoladamente medidas que foram recomendadas pelo corpo técnico da região e os demais municípios não adotaram. Diante de todas essas dificuldades no processo decisório e da necessidade de corrigir isso é que o Ministério Público decidiu intervir em defesa da saúde pública, a fim de que as medidas fossem de fato efetivadas a partir dos critérios técnicos e científicos. Essa decisão considerou, também, que durante esse processo em que não se conseguiu organizar bem o fluxo decisório a pandemia foi se agravando muito e significativamente no Estado, tanto que nós passamos de 146 óbitos quando esse processo se iniciou, em 1º de junho, para 1.235 óbitos em 4 de agosto, como destacou a decisão judicial. Foi uma evolução muito grande da pandemia durante esse período sem que medidas efetivas fossem de fato adotadas, sem que a gente percebesse uma organização e o cumprimento de fato de uma decisão regionalizada. Por conta disso é que o Ministério Público, depois de muito dialogar, de muito tentar resolver esse problema, não teve outra alternativa que o ajuizamento da ação civil pública. O que se espera a partir da decisão é que essas falhas do processo decisório sejam corrigidas, que exista previsibilidade das medidas que vão ser adotadas para cada nível de gravidade e que as ações sejam de fato implementadas com rapidez, porque quanto mais se demora para adotar as medidas, maiores vão ser as chances de se perder o controle da pandemia e o agravamento gerar o colapso do sistema hospitalar. A gente sabe que, quando uma medida é adotada, ela vai surtir efeito na transmissão depois de pelo menos duas semanas. Então, quanto mais se demora, maior vai ser o tempo para que haja uma mudança nessa curva de contágio. Por isso que as decisões precisam ser rápidas, e o Ministério Público espera que, com essas correções determinadas pela decisão judicial, isso aconteça.